Todos os dias, parece que seu trajeto é o mesmo. Ele chega guiando seu carro. Acompanhado está de seus cinco fiéis escudeiros. Estaciona. Destranca a porta à sua frente. Recolhe a preciosidade que lhe dá sustento. Ajeita tudo em seu possante e parte para não sei onde. Até agora.

Francisco Ferreira da Silva, 37 anos. Homem forte com barba que parece de urso. Emprego não tem, mas desempenha o ofício de catador de papelão com muita dignidade. A negativa parece uma constante em sua vida. Casa também não há… Em formas.A única coisa que realmente possui é o amor de seu companheiro, o imprevisível Teimoso.

Ao perceber esta parceria de afeto, a curiosidade instigou a contação desta história. A chuva se prepara para escorregar e o frio não permite conforto. Seu Chico encontra alguém que quer lhe escutar. Em seu labirinto de vida, não entende o que tem de tão especial. Tal qual o céu, percebo que seus olhos ensaiam um pouco d´água ao contar que cometeu um erro. Sabe que foi grave. Tudo nesta vida merece uma segunda chance. A sua ainda não chegou.

Há algum tempo, mora na rua. Seus irmãos queriam lhe dar abrigo, mas os cachorros não eram bem-vindos. Ele não aceitou esta separação. A vida no concreto é difícil. Sabe que está exposto a inúmeros riscos. Dias atrás, foi surpreendido por homens que queriam atacá-lo. Seus companheiros de praça não o ajudaram. Seus cães protetores entraram em ação. Por ora, está a salvo. Assim prefere pensar.

Entre uma recordação e outra, o cheiro forte do lixo se faz presente. Suas andanças são confessadas em seu ambiente de trabalho. Neste dia, não só a porta do recinto que guarda os restos daquele restaurante se abre. As pessoas que caminham pela rua se surpreendem ao ver este homem sendo ouvido. Dois seguranças se aproximam para atestarem se realmente não há nenhuma anormalidade. HÁ. Ela se encontra no preconceito do olhar.

Uma falta se faz presente. Desta vez, não há marcas de patas na jaqueta da ouvinte. Teimoso resolveu passear e perder a sua grande homenagem. Com estatura mediana, cabelos pretos e dentes afiados, ele ganhou o título de “O melhor amigo”. O temperamento imprevisível faz parte de sua psicologia pessoal. Mas quem não o tem? Dizem as más línguas que a recepção que deu à garota que decidiu ouvi-los é sinal de boas-vindas. Sua educação é muito seletiva.

Francisco nunca imaginou que teria a oportunidade de homenagear seu grande Sancho-Pança. Separando suas caixas de papelão, se emociona ao descrever a fidelidade do seu brother. Quando o sono esperto bate, Chico procura um lugar para tirar aquela soneca. O chão áspero é seu travesseiro e o seu rosto, a almofada macia de seu cão. “É um amor que não dá para explicar”.

O peso de seu carrinho não traz apenas papel: Os dias são carregados ali. Em uma personalidade que dizem não saber de lutas e sentimentos, encontra vida. O guarda-costas de quatro patas é o seu tudo. Televisão, amigo, família. Há cerca de um ano, enquanto trabalhava, encontrou o cachorro em frente à Kibon de Santo André. Foi acolhido enquanto chorava. Hoje, sua fidelidade é abraço imaginário daquilo que chamam de lar.

Um pouco envergonhado, sua intimidade vira confissão. “Queria ser um cachorro”. Com convicção, afirma que os animais são vistos e recebem carinho, ao contrário de um Homem em sua condição. A sensação que inspira é de um certo alívio. Ele foi visto, mesmo que por alguns minutos.

 Os dois vivem nas ruas, repartem o pão, enfrentam o inverno. Caminham no mesmo passo da carroça que os sustentam. O único detalhe que os diferem é o da racionalidade. Teimoso age como ser humano e Chico é visto como selvagem.

A porta se fecha. As mãos agarram o carro. As rodas grandes giram. Atrás, um mastro hasteia a cabeça de uma boneca. Ela acompanha a mente cansada de um homem que ainda espera viver.